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Corpo, pista e política: o papel do disc jockey na criação de espaços seguros

  • Shoyu
  • 1 de jun.
  • 5 min de leitura

Na relação entre som e pertencimento, qual o papel de DJs na construção de ambientes mais inclusivos?


Na contramão da lógica dominante que transformou a música eletrônica em mercadoria de festival e estética de luxo, há uma história muitas vezes esquecida: a de que esse som, antes de ocupar palcos gigantescos e se vestir de tecnologia, nasceu da urgência por pertencimento. Foi no subsolo, nos porões e nas esquinas de Chicago, Detroit e Nova York que pessoas negras e LGBTQIA+ encontraram, na batida contínua, uma forma de existir com liberdade. A pista, nesse contexto, era refúgio e resistência. Era território de invenção social. Décadas depois, essa pulsação persiste. Ainda que o mercado tente homogeneizar o som e o público, a música continua sendo um canal de expressão para corpos diferentes. O DJ, nesse cenário, não é apenas o responsável pela trilha sonora da noite, mas o articulador de atmosferas, o mediador de afetos e o curador de memória.


Para DJ Makal, artista negro natural do Rio de Janeiro e residente da capital catarinense, a construção de sua identidade musical vêm a partir da escuta e do respeito ao território periférico. Suas performances conectam diretamente a música à vivência urbana coletiva e consciência social.


“O movimento hip hop tem uma força muito bonita dentro de várias atmosferas, com diversas atividades essenciais pra vivência em comunidade ”, afirma. “Eu vejo como um pilar de construção de caráter.”

A base do seu trabalho está na curadoria, que não busca agradar o mainstream, mas sim comunicar verdades. “Minha identidade musical vem nos sets representando a realidade periférica. O rap tem esse poder: transmitir a realidade da rua para quem não faz parte dela.” Makal entende o som como ferramenta de tradução social. Seu compromisso está com a mensagem, não com a estética e esse posicionamento se desdobra também em estratégia. Ele reconhece as barreiras de classe e raça dentro da cena. “Já é difícil ser da raça negra em todos os segmentos, imagina ser DJ num mercado altamente classista?”, questiona. Para lidar com isso, ele adapta a linguagem sem diluir o conteúdo. “Posso tocar um rap americano num lugar onde seria barrado se fosse nacional, mas a essência está ali. A mensagem e a cultura continuam representadas.”

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A experiência na cabine é, para Makal, um campo de escuta e reconhecimento. “Minha atuação é para que todos se sintam à vontade. Ver o sorriso de pessoas pretas ao ouvirem uma música que as representa é o auge do meu trabalho.” Seus sets são construídos ao vivo, sem roteiro fixo, com base na leitura da pista. “Todas as músicas que toco têm essa configuração: vivências, ensinamentos, acolhimento e protesto.”


Se Makal opera a partir de uma escuta histórica e cultural, DJ Sete insere outra camada à discussão: a da presença corporal como enfrentamento simbólico. Mulher transsexual, ela atua como DJ open format com foco no funk e suas vertentes eletrônicas. Sua trajetória é marcada pela construção de uma imagem pública não hegemônica, desafiando os padrões sonoros e visuais da cena noturna.


“Eu sempre estive presente no rolê desde que pude — na pista do Guanabara, na Type, no MAJ. Eu era vista, mas nunca sentia que era algo além de ser uma pessoa trans e gorda”, relembra. Foi quando começou a tocar que essa percepção mudou. “Com a minha carreira, eu sinto que sou algo pelo que faço. Tocar me deu sentido para viver.”


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Sete é residente em duas das principais casas da cidade. Ela reconhece que sua trajetória só foi possível por caminhos abertos por coletivos que atuavam dentro desses espaços. “Teve um momento muito importante na cidade, quando a UNDR recebia festas de coletivos, e isso abriu espaço pra corpos diferentes mostrarem trabalho. Eu vivi tudo isso. Me sinto parte.” Sua construção estética é atravessada pela emoção. “Minha emoção define totalmente como meu set vai ser ouvido. Eu vivo segundo por segundo do tempo do meu set.” Mais do que técnica ou gosto musical, Sete impõe sua presença com convicção.


“A coisa mais incrível é ver alguém olhar pra cabine esperando um corpo padrão tocando, e se deparar comigo. Totalmente à vontade, controlando aquele espaço.” Para ela, isso gera um tipo específico de confiança. “Eu mostro que meu corpo respeita — e vai ser respeitado.”

Ela sabe que sua figura tem impacto público, ainda que não queira reduzir sua carreira a representatividade. “Gosto de ser vista e ouvida. E se isso inspira pessoas, acho muito massa. É gratificante saber que posso ser alguém que tem esse poder. Responsa, né?” Ainda assim, faz questão de deixar claro: “Eu foco em criar memórias, mas não toco de graça e nem por trocado. Sai fora!”.


É nesse campo expandido da presença que entra também Badeya, artista neutrois, produtor e DJ que enxerga na música eletrônica uma linguagem de cura, pertencimento e elaboração sensível do mundo. Seus sets transitam entre house, garage, grooves brasileiros e música experimental. “A pista para mim é como uma entidade. Quem dança ali não está pra ser avaliado. Existe algo de puro nessa vontade de se expressar sem nem mesmo se dar conta".


Os DJ's Makal, Se7e e Badeya, embora com trajetórias distintas, compartilham a recusa em ceder aos formatos impostos. “Tocar músicas que provêm dessas esferas culturais e históricas é uma forma de dar continuidade ao legado da música eletrônica”, diz Badeya.

“A música foi uma linguagem que me acolheu quando eu nem sabia nomear o que sentia. Depois virou ferramenta de resistência. E agora é também cuidado. Comigo e com quem me escuta.”

Mesmo vivendo em Joinville — cidade de economia industrial e cena musical mais conservadora —, elu encontra fissuras. “Das vezes que eu mais ousei foram as que mais conectaram. Às vezes as pessoas nem sabem o nome do que estão ouvindo, mas elas sentem. E quando sentem, se permitem. É isso que me move.”


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A atuação como DJ, para o artista, vai além do repertório: “Não me vejo como um músico, mas como um canalizador. Uma pessoa que acessa coisas e entrega para quem está aberto a receber. E isso só acontece com respeito à pista. Com escuta real.” Em seus sets, não há pressa nem imposição, há convite. “Eu toco para criar atmosferas. Quero que a pessoa se sinta confortável para existir como quiser. Isso é o mais político que eu posso ser.”


Juntos, eles reconfiguram o papel do DJ: não como estrela do palco, mas como arquiteto de presença. Criam pistas que são abrigo e rito. Onde a dança não é performance para o outro, mas expressão de si. E onde o som não é só batida, mas um código vivo de existência. Porque, no fim das contas, enquanto houver quem insista em dançar com o corpo inteiro, o mundo vai continuar ouvindo o que ele tem a dizer.


O portal Um Olho segue na luta para a construção de espaços onde os corpos possam existir sem medo. Dançar, resistir & vibrar! ♫

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